
Categoria: Artigos
Data: 31/10/2022
Protestantismo e Educação
Neste ano, a Reforma Protestante completa 505 anos, tendo como marco de referência histórica as Noventa e Cinco Teses teológicas afixadas por Martinho Lutero em Wittenberg, Alemanha. Foi um ato preponderantemente religioso, com nuances políticas, sociais e econômicas, mas também visava o debate de ideias, algo incomum ao ambiente convulsivo daquela época mais acostumada a resolver as coisas pela guerra.
A Reforma Protestante e seus desdobramentos certamente são um dos mais importantes marcos históricos dos séculos XVI e seguintes, por múltiplas razões. Porém, uma delas chama a atenção: o impacto do protestantismo sobre a concepção e abrangência da educação.
Muitos estudos, artigos e livros já foram escritos demonstrando a importância dada pelos reformadores para a educação, desde a básica até o ensino superior, visando preparar crianças e jovens para funções eclesiásticas, como era a ênfase da época, mas, principalmente para os negócios civis como esfera de atuação da confissão de fé e da cosmovisão cristã reformada.
Da iniciativa de João Calvino por meio da Academia de Genebra, em 1559, na qual, a princípio, o foco era a schola privata (que ensinava as crianças e adolescentes até dezesseis anos), e depois, a schola publica (que fornecia o ensino universitário), surgiu a Universidade de Genebra e, posteriormente, várias das maiores e renomadas universidades europeias e americanas fundadas por protestantes nos séculos seguintes. Fica claro o apreço dos protestantes pela educação, como instrumento de transformação social e desenvolvimento da sociedade.
Aquela Academia de Genebra, considerada por um de seus professores, Charles Bourgeaud (1861-1941), como “[...] a primeira fortaleza da liberdade nos tempos modernos”, demonstra, que “o calvinismo é uma biocosmovisão completa que envolve todos os aspectos da vida e todas as áreas do conhecimento humano. O calvinista não pode se satisfazer apenas com uma teologia reformada; ele busca uma filosofia igualmente reformada, uma ciência, uma arte, uma cultura, uma política reformada. Todas as áreas da ciência podem e devem ser exploradas a partir de pressupostos cristãos reformados, através da examinação pressuposicional (dos fundamentos teóricos) e estrutural, segundo o motivo bíblico elementar da criação-queda-redenção” (Gouvêa, 1996).
Alistar McGrath, o renomado estudioso de Calvino e do calvinismo, afirma que “O calvinismo se transformou num movimento internacional; um número crescente de universidades se tornou favorável em relação à nova religião” (McGrath, 2004). Tal era a importância que Calvino dava ao lugar da universidade como formadora de valores aderentes à confessionalidade cristã que ele chega a escrever a Eduardo VI, rei da Inglaterra entre 1547 e 1553, sobre o bom uso da subvenção real à formação acadêmica e à pesquisa em uma época na qual as bolsas de estudos eram tão estratégicas para os reinos como os tributos que mantinham os exércitos.
McGrath (2004), citando Alphonse de Candolle, analisa o interesse e a contribuição científica de pesquisadores católicos e protestantes e chega à conclusão de que os calvinistas eram, consideravelmente, uma minoria em muitas regiões da Europa naqueles tempos e, conforme a Academie des Scienses parisiense entre 1666 e 1883, cerca de 18,2% de pesquisadores eram católicos, enquanto 81,8% eram protestantes. Outro exemplo dado por ele é o fato de que “[...] a composição primitiva da Royal Society de Londres era dominada por puritanos” calvinistas, a ponto de, nos séculos XVI e XVII “[...] tanto as ciências físicas quanto as biológicas serem controlados por calvinistas” (McGrath, 2004). E a razão desta discrepância (entre o segmento religioso da população versus a contribuição científica) devia-se ao incentivo à pesquisa científica baseado na cosmovisão cristã de um mundo criado por Deus com ordem e previsibilidade, sem as quais nenhuma ciência exploratória e descritiva faria sentido; devia-se também ao fato de não haver hostilidade nem receio de proclamar a harmonia na relação entre a ciência e a fé.
De fato, o avanço da ciência, por incrível que possa parecer para alguns nos dias atuais, foi motivado pela concepção religiosa advinda do cristianismo e suas crenças, as quais incluem a existência em Ser Superior racional, cujos princípios e leis naturais se revelam nas coisas que Ele criou, e que podem ser descobertas, estudadas e desenvolvidas como elementos formadores de mais conhecimento, mais pesquisa, mais descobertas. e assim por diante. Neste sentido, John Lennox (2011, p. 39) trata aquilo que chama de “as raízes esquecidas da ciência” para afirmar que “[...] no âmago de toda ciência está a convicção de que o Universo é ordenado. Sem essa profunda convicção, a ciência não seria possível”.
Essa mesma convicção faz Borges (2008) concluir em relação a Calvino e, de modo expandido, a todos os calvinistas verdadeiros: “Calvino confessa claramente a possibilidade de aliar a pesquisa à firme convicção de que há um só Criador e que, portanto, as investigações podem aprofundar-se o quanto for necessário sem que se corra nenhum risco de uma descoberta científica ser prejudicial à vida de fé. A educação confessional calvinista é, portanto, uma forma de educação que deve privilegiar a pesquisa científica como um ato de fé e de reverência ao Criador”.
Nesse mesmo sentido insere-se a avaliação do Reverendo Ashbell Green Simonton, primeiro missionário presbiteriano a vir ao Brasil em 1859, em sua célebre proposta ao Presbitério do Rio de Janeiro, sob o título “Os meios propícios para plantar o Reino de Jesus Cristo no Brasil”, em 16 de julho de 1867, na qual enumera, dentre seis iniciativas imprescindíveis para transformar o Brasil, a criação de escolas.
Simonton afirma: “É de confessar que a educação há de encontrar grandes obstáculos provenientes de muitas causas. Muitos pais de família são descuidados a este respeito, nem querem fazer os sacrifícios preciosos para educar os seus filhos. Estes de sua parte, não estando acostumados a obedecer a seus pais, não gostam do regime da escola bem dirigida (...) Faltam professores e professoras com a prática necessária para bem desempenharem esta missão e o governo ainda não admite a instrução e educação da nova geração. Sendo este meio indispensável, temos razão para esperar que Deus nos deparará os meios de atingi-los.” (Simonton, 1867).
Assim, a longa tradição educacional protestante aporta no Brasil, sobe a serra do mar anos depois e pela instrumentalidade do casal Chamberlain, dá-se origem à nossa instituição aqui em São Paulo, em 1870. Para Mota, em seu artigo “À procura das Origens do Mackenzie” (1999), a referência mais antiga ao que chama de “primeiro instante ‘mackenzista’” vem da tese de doutoramento Portrait of a Half a Century, de Robert Leonard McIntire na Universidade de Princeton e publicada pelo Centro Intercultural de Documentácion, no México, onde se pode ler: “Naquele mesmo ano (1870), a senhora Chamberlain reuniu três crianças consigo e começou um trabalho que culminou na Escola Americana, e depois, no Instituto Mackenzie”.
Outra referência histórica obtida por Mota (1999) vem de Horace M. Lane, em um folheto publicado em 1891, em inglês, para distribuição nos EUA, onde se lê: “A escola São Paulo (Escola Americana) foi fundada em 1870. A sua primeira classe consistiu de duas pequenas crianças, um menino e uma menina – a primeira iniciativa neste Império no sentido de educação conjunta para ambos os sexos”. A iniciativa dos Chamberlain de abrir as portas de sua própria casa nos Campos Elíseos, “[...] para ministrar lições de alfabetização a crianças não inseridas nas elites paulistanas [...]”, foi seguida pelo início de “[...] salas de ensino formal, então em outro endereço – Rua Nova de São José, no 1, atual Rua Líbero Badaró – matriz mais antiga da Protestant School, depois Escola Americana” (Mendes, 2007).
Depois de passar por uma outra localização (a esquina da Rua de São João com a Ipiranga) devido ao rápido crescimento no número de alunos, a nova etapa foi a criação dos chamados cursos superiores em 1886, o que deu razão para passar a ser chamado de Protestant College, um passo a mais para a consolidação que vem a se acentuar ainda mais com a posterior assunção à direção da Escola Americana e do Protestant College do médico e educador americano Horace M. Lane (1837-1912), que ali permaneceu por 27 anos.
Portanto, a Academia de Genebra pode ser considerada a semente que deu muitos frutos. E o Mackenzie aquele que veio germinar para abençoar o nosso país. A seiva que flui dessas frondosas árvores é o espírito protestante.
Rev. Dr. Robinson Grangeiro Monteiro
Chanceler do Mackenzie